A medicina de emergência é negligenciada no Brasil


emergencia

A medicina de emergência é aquela cujo médico, chamado de médico emergencista, tem como função diagnóstico e tratamento de qualquer situação imprevista, sem agendamento prévio, que esteja causando intenso sofrimento e/ou que tenha potencial para morbidade e mortalidade, se não abordada precocemente. Em suma, é aquele que trabalha atendendo urgências e emergências.

São dois os cenários principais: O primeiro e mais comum é o pronto-socorro (PS), foco principal deste texto, o outro é o atendimento fazendo resgate, como no caso dos médicos de unidades móveis do Corpo de Bombeiros, SAMU e forças armadas.

Embora desempenhem funções semelhantes, o emergencista é diferente do médico intensivista, que é aquele responsável pelo tratamento de pacientes em unidades de tratamento intensivo (UTI). O emergencista é aquele que tem o primeiro contato com o paciente, enquanto o intensivista atua num segundo momento, a depender da gravidade do caso.

Trabalhar com urgências e emergências pode ser bastante atrativo para estudantes e jovens médicos, mas a forma como esse profissional é tratado no Brasil, faz com que toda empolgação e interesse na área se transformem em agonia e sofrimento para o médico que se aventura no ramo.

Muitos consideram o trabalho em um pronto-socorro como o pior emprego que um médico pode ter. É muito comum ouvir dos profissionais da área que a principal meta em suas carreiras é mudar para áreas mais tranquilas e valorizadas da medicina. O porquê dessa aversão é o que pretendo abordar e, como de costume, dividi as diversas questões envolvidas em tópicos, para que o texto fique fácil e didático.

1)      A especialidade nem é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina:

No Brasil a medicina de emergência não é reconhecida como especialidade médica. Quando precisam de “especialistas” na área, recorrem a intensivistas ou a profissionais que fizeram cursos ou pós-graduações voltadas para o atendimento de urgências e emergências.

2)      Faltam vagas de residência na área:

Quantos médicos vocês conhecem que fizeram pós-graduações ou residência médica em urgências e emergências? São pouquíssimas as vagas quando comparadas à quantidade disponível nas outras especialidades médicas.

3)      Falta de valorização do profissional:

O médico que termina a faculdade e continua fazendo cursos e especializações voltados para o atendimento em urgências e emergências, o faz por puro altruísmo, pois, com raras exceções, desempenharão as mesmas funções e terão o mesmo reconhecimento que aqueles que nunca tiveram tal interesse. Com raríssimas exceções, quase não existem vantagens ou incentivos para aqueles que decidiram se aprofundar na área.

4)      Falta de informação da população:

No Brasil, as pessoas procuram o pronto-socorro para todo o tipo de coisa. Por incrível que pareça, o que menos se atende num PS são urgências e emergências. Quando você vê aquele ambiente lotado de gente, pode apostar que 90% deveria ter marcado consulta ambulatorial, ou seja, não deveria estar ali. O médico que gosta de urgências e emergências não quer ficar tratando micose, resfriado, dorzinha de coluna, etc. Esses casos sem gravidade desestimulam o médico, tumultuam o serviço e prejudicam o atendimento daqueles que realmente precisam.

5)      Falta de segurança nos prontos-socorros:

Dificilmente temos vigilantes ou seguranças no pronto-socorro. Quando presentes, sao quase sempre despreparados e desarmados, ou seja, não adiantam quase nada. Toda a equipe e o médico ficam à mercê de desacatos, agressões verbais e físicas, correndo até risco de morte, devido a pacientes e acompanhantes insatisfeitos, revoltados, alcoolizados, drogados ou com transtornos mentais.

6)      Falta de estrutura e funcionários:

Geralmente são poucos os enfermeiros, bioquímicos, biomédicos, técnicos de enfermagem, técnicos de radiologia, recepcionistas e maqueiros nesses setores. Formam-se filas na recepção, na triagem, na sala de medicamentos e no laboratório, lentificando o atendimento, e consequentemente prejudicando a qualidade, e aumentando os riscos para pacientes e profissionais.

7)      Falta de triagem / classificação de risco:

São raríssimos os prontos-socorros que dispõem de triagem / classificação de risco. Pacientes graves, com risco de morte, procuram atendimento e esperam horas na fila, ao invés de serem passados na frente dos pacientes com casos sem gravidade, que são a grande maioria.

8)      O fardo de ser responsável por um hospital inteiro:

O médico no pronto-socorro acaba ficando responsável por todos os pacientes internados num hospital gigantesco, nas diversas especialidades. Num país decente, existiriam médicos de plantão responsáveis pelas enfermarias e apartamentos, mas esse não é o caso do Brasil na maioria das vezes. Quando é chamado para intercorrências com os pacientes internados, o médico precisa sair do pronto-socorro, deixando o serviço descoberto, aumentando filas, aumentando riscos, gerando revolta dos pacientes, etc.

9)      Dificuldades para resolução dos casos:

O emergencista deveria, teoricamente, prestar o atendimento inicial, fazendo ou guiando o diagnóstico, estabilizando o paciente, para logo em seguida passar o caso adiante, seja para uma UTI, ou aos cuidados do clínico especialista, ou cirurgião, hemodinamicista, etc. Na prática, devido a indisponibilidade desse profissionais, por falta de vagas, de exames, ou por falta de condições financeiras ou problemas com autorizações dos planos de saúde, o médico do PS passa o plantão todo ocupado com burocracia ou manejando casos que já não são mais da sua alçada.

10)   A falta de direitos trabalhistas:

São raros médicos que tem carteira assinada ou mesmo um simples contrato com os hospitais. Os médicos que trabalham em prontos-socorros quase nunca tem direito a afastamento remunerado por questões de saúde, nem férias, décimo terceiro salário e outros benefícios previstos na CLT. Não tem sequer a hora de almoço garantida.

11)   Estresse intenso e constante:

O profissional que trabalha num pronto-socorro fica sob estresse e pressão constantes. A imprevisibilidade do que vai aparecer, a falta de condições de trabalho e de segurança; a superlotação da unidade, as intercorrências das enfermarias; a falta de especialistas, de exames, de vagas de UTI, de ambulâncias para transportes; pacientes e acompanhantes enfurecidos e ameaças constantes. Isso enlouquece qualquer um. Pouquíssimos profissionais querem isso para a vida toda, fugindo da especialidade quando finalmente estão no auge do preparo para a mesma.

12)   A remuneração:

Lidar com urgências e emergências é uma imensa responsabilidade, envolve imensos riscos e estresse constante. Deveria ser um trabalho dos mais valorizados e bem remunerados, mas o que acontece é justamente o inverso. Ou paga-se pouco por plantão, ou o plantonista recebe muito pouco por paciente atendido, fazendo com que tenha que atender uma grande quantidade para ter uma remuneração moderada. Existem áreas muito mais tranquilas e valorizadas.

13)   O alto risco jurídico:

Trabalhar com casos graves, na correria e sem as condições ideais, resulta em prejuízo à qualidade do atendimento e à relação médico-paciente. O índice de erros médicos nessas condições aumenta, e mesmo quando não existe o erro, a falta de diálogo imposta por essas condições acaba fazendo com que paciente e família acabem produzindo demandas jurídicas diversas, mesmo que não tenham fundamento.

14)   A grande quantidade de médicos recém-formados atuando na área:

No atendimento de urgências e emergências, um pequeno vacilo pode resultar em consequências desastrosas. É uma área que deveria ter os médicos mais experientes e bem preparados, mas o que acontece é justamente o contrário! O fato de ser uma área de maior risco e estresse, faz com que médicos mais experientes acabem migrando para outros tipos de trabalho. As vagas no mercado acabam sendo preenchidas por médicos recém-formados, que não tem muitas opções logo ao sair da faculdade.

Por mais bem preparados que sejam, é inegável que carecem de certa experiência. Algumas nuances quanto ao manejo clínico, administração do tempo, adaptação de protocolos ao serviço, questões burocráticas, éticas, jurídicas e interpessoais, só vem com o tempo. A predominância de médicos inexperientes sempre será um fator preocupante.

Enfim, diante de tudo isso, podemos ver que o problema não é só para o médico, mas também para a população. Tudo que foi exposto acaba fazendo com que o trabalho em urgências e emergências seja negligenciado de forma global, pelos gestores, MEC, conselhos de medicina, unidades de saúde e pelos próprios profissionais, que tem que se adaptar aos diversos problemas discutidos há pouco.

Se a medicina de emergência recebesse mais atenção, mais incentivos, tanto na formação quanto gestão dos serviços, teríamos maior quantidade de médicos interessados em investir na especialidade, melhorando o atendimento e qualidade de vida desses profissionais. Diminuiriam os casos de morbimortalidade, aumentaria a satisfação dos clientes, diminuiriam as demandas jurídicas diversas, enfim, seria bom para todos. Infelizmente não vejo muita atitude e nem perspectivas de mudar esse cenário atual.

No Brasil existem alguns pouquíssimos serviços de excelência voltados ao atendimento de urgências e emergências, e alguns outros poucos que oferecem algumas condições satisfatórias de trabalho, mas são exceções. A grande parte dos prontos-socorros se encaixa perfeitamente em tudo que descrevi. Fica aqui os meus parabéns a todos os profissionais que ainda se dedicam à essa área tão desvalorizada da medicina. Que um dia esse cenário mude, para o bem da profissão, do profissional e, principalmente, da população.

Solon Maia
Médico e cartunista autor do blog Meus Nervos
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